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Liberdade de Expressão – O que podemos e o que devemos?

  • celsonhupfer
  • 3 de mai. de 2024
  • 11 min de leitura

“Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” – Carta do Apóstolo Paulo aos Coríntios, Cap. 10, Vers. 12.


Há algum tempo, a questão da liberdade de expressão tem ocupado corações e mentes ao redor do mundo. Sempre presentes nas democracias, as discussões se intensificaram a partir das eleições americanas de 2016, quando sobrevieram denúncias de interferência russa e do uso de instrumentos de disseminação de notícias falsas na campanha que elegeu Trump. Da mesma forma que nos EUA, também aqui no Brasil, a liberdade de expressão esteve frequentemente associada à questão das chamadas Fake News, primeiramente no processo eleitoral de 2018, que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro, e, posteriormente, durante a pandemia da Covid-19. Os debates subiram de tom depois de decisões da corte suprema do Brasil proibindo certos discursos e determinando o encerramento de algumas contas de lideranças associadas com a extrema direita, o que tem sido lido como censura ou cerceamento à liberdade de expressão. O fenômeno dos “influencers”, proporcionado pelo enorme crescimento das redes sociais nos últimos anos e pelo potencial de confusão e disseminação representado pelo advento da Inteligência Artificial e o que se denomina de Deep Fake, tornam a questão ainda mais complicada. No paralelo, num outro fenômeno relacionado à tecnologia das redes sociais, expandem-se quase à velocidade da luz, as capacidades de coleta, armazenamento e tratamento de dados comportamentais dos indivíduos pelas Big Techs, ao que a ex-professora da Harvard Business School, Zoshana Zuboff dá o nome de Capitalismo de Vigilância. Por conta de tudo isso, sociedade e instituições estão sendo chamadas ao debate para definição dos limites da liberdade de expressão, o controle das redes sociais e de seu poder de disseminar conteúdos, falsos ou não, e seus impactos sobre os processos eleitorais ao redor do mundo, sobre a formação das consciências de adolescentes, jovens e adultos. E não é diferente aqui no Brasil, movimento intensificado pela recente polarização entre a extrema direita e todos os matizes do progressismo.

Vou me arriscar a dar alguns palpites neste debate, consciente de seu potencial de controvérsia. Como sempre me considerei um hegeliano, ou seja, amante da dialética, entendo que, se os argumentos para uma ou outra direção se pautarem pela ética, racionalidade e propósito de alcançar um entendimento satisfatório, as divergências são sempre bem-vindas, porque a síntese que se produz tem o potencial de ser melhor do que a tese anterior. É como se evoluíssemos em espiral. Desde o início, no entanto, acredito ser importante deixar claro os meus pontos de partida.

Em primeiro lugar, a minha noção de liberdade de expressão se insere na discussão mais ampla de liberdade como valor de uma sociedade. Esta, por sua vez, se conecta com a ideia de que, para ser livre, o sujeito que quer ou é solicitado a participar do debate deve ter asseguradas as condições mínimas para exercer sua liberdade. Ou seja, o exercício da liberdade vem acompanhado de um esforço da sociedade para a redução da desigualdade, visto que a igualdade total é uma quimera que fica para as utopias. Este ponto de partida tem potencial de grande controvérsia, pois está implícito que não consigo concordar com a liberdade de expressão absoluta, como querem algumas linhas de pensamento. Ela implica em compreender que a liberdade de expressão, especialmente do mais poderoso, precisa ser limitada ou controlada. É um ponto de partida que precisa ser informado.

Em seguida, também me parece um princípio necessário para o debate que os participantes adotem um sincero compromisso com a ética. Evidentemente, isso não significa que advogo uma posição ingênua dos debatedores. Quer dizer apenas que, quando a ausência de ética se traduz em agressão e intolerância com a argumentação alheia, eu prefiro não participar. Também significa posicionar-se radicalmente contra a disseminação intencional de notícias falsas, com o objetivo de gerar pânico ou respostas dos recebedores da informação que seriam diferentes se a ética e racionalidade estivessem na raiz da informação. Claro que não me refiro aqui ao erro. Ele estará sempre presente. A questão é tão somente a divulgação intencional de conteúdo falso. Não acho que faz sentido requisitar o direito à liberdade de expressão quando a intenção é explicitamente de gerar desinformação.

Assim como outros fenômenos da interação social, a liberdade de expressão se presta a análises a partir de inúmeras diferentes perspectivas. Durante a história da humanidade, a liberdade de expressão experimentou os mais diversos níveis de realização. Existem aqueles que defendem a liberdade de expressão como um princípio absoluto, acima de qualquer coisa, e aqueles que, como eu, entendem que a sociedade deve ser capaz de definir qual a sua amplitude. Claro que quando ela está ausente, como acontece em regimes ditatoriais, nem o debate nem o estudo são possíveis. Sem qualquer pretensão à exaustão, neste texto trago para discussão três questões que me parecem essenciais, quais sejam:

- Devem existir limites para a liberdade de expressão? Se sim, quais são esses limites?

- Deve haver algum tipo de regulação para evitar a assimetria de poder tanto das pessoas quanto dos meios de disseminação da informação?

- Quem deve ter o poder de decidir sobre o conteúdo? E, mais do que isso, como pergunta a Professora Zuboff, Quem decide quem decide?

Entendo que, ao responder a estas questões, com o propósito de produzir segurança e liberdade a quem se expressa, é possível caminhar na direção de uma regulamentação. É claro, partindo do pressuposto de que ela requer uma regulamentação, pois existem aqueles para quem a liberdade de expressão é absoluta e não aceita qualquer tipo de restrição.

A primeira destas questões, entendo que pode ser subdividida em três outros problemas: o da tolerância, o da mentira e o dos discursos de ódio. Faço isso apenas para facilitar a discussão, já que talvez pudéssemos resumir todos eles à questão da tolerância. Para isso, recorro para me auxiliar ao filósofo austríaco Karl Popper e ao que ele deu o nome de Paradoxo da Tolerância. Este paradoxo é apresentado em seu livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos, que é uma crítica às ideias filosóficas que, na sua opinião, deram origem aos movimentos totalitários do século XX. Nas suas palavras,

“A tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender a sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, juntamente com a tolerância...não pretendo dizer que devemos sempre suprimir a verbalização de filosofias intolerantes; conquanto que possamos contradizê-las através de discurso racional e combatê-las na opinião pública, censurá-las seria extremamente insensato. Mas devemos reservar o direito de suprimi-las, mesmo através da força; porque poderá facilmente acontecer que os intolerantes se recusem a ter uma discussão racional, ou pior, renunciem a racionalidade, proibindo os seus seguidores de ouvir argumentos racionais... e responder a argumentos com punhos e pistolas”.

Seguindo esse raciocínio, com o qual estou de acordo, me parece que algumas perguntas se fazem pertinentes: como tratar discursos que defendem “intervenção militar já”, fechamento do Congresso e do STF? Se e quando isso acontecer, nós continuaremos tendo o direito de nos expressar com liberdade ou ela terá sido suprimida? Quem viveu sob regimes militares provavelmente poderá responder melhor. Como tratar aqueles que, por suas palavras, incentivam o uso da violência para atentar contra as instituições de Estado em um regime democrático? Como tratar aqueles que promovem discussões escondidas ou às claras sobre o desejo e a possibilidade de um golpe de estado, antes ou depois de perder as eleições? Como o golpe não se concretizou, não houve crime? E, se ele tivesse se concretizado, estaríamos livres para discuti-lo? É censura proibir certos influenciadores, de direita ou de esquerda, de propagar discursos que levam à interrupção do estado de direito, como intervenção militar ou ditadura do proletariado nas redes sociais? Ou estamos apenas sendo tolerantes com os intolerantes e, assim, correndo o risco de perder a liberdade? Evidentemente que alguns vão preferir afirmar que já vivemos sob uma ditadura, a ditadura da toga. Mas isso nos leva ao terceiro ponto: quem decide e quem decide quem decide? Vou abordar isso mais adiante. E aqui há uma outra questão de princípio: quando estas discussões são um problema? Entendo que existem duas situações: elas estão no âmbito das argumentações e desejos individuais de cada um, sobre teorias etc. ou são manifestos de incentivo a golpe de estado e abolição do estado de direito? Um influenciador está opinando ou está estimulando? Um está no nível da argumentação, outro já está indo para a ação. A opinião certamente não deveria ser cerceada. Quando ela deixa de ser opinião e passa a ser instigação a atos de destruição do outro, das instituições, de raças e etnias?

Outra questão a enfrentar é o problema da mentira, que já foi objeto de inúmeros estudos de filósofos, psicólogos, antropólogos e cientistas políticos. Para alguns, ela não é um problema exclusivo dos seres humanos e é quase que uma condição de sobrevivência de muitas espécies, como apontou o economista e filósofo brasileiro Eduardo Gianetti da Fonseca, em seu “O Autoengano”. Mentimos para os outros e para nós mesmos, por necessidade ou sem necessidade e, para piorar, muitas vezes acabamos por acreditar nas próprias mentiras. Para complicar as coisas, no mundo laicizado a verdade é quase sempre provisória. Ela só pode existir na fé, onde não pode ser contestada. Na fe você acredita ou não, mesmo que não consiga provar cientificamente. Por sua vez, a ciência, apesar de frequentemente ter pretensões verdadeiras, só é ciência porque pode ser falseada, isto é, sua verdade pode ser substituída por uma nova verdade. É assim com as ciências sociais e com as ciências físicas, biológicas, químicas etc.

Para o nosso propósito aqui, no entanto, a questão é se disseminar mentiras deve ser tolerado em nome da liberdade de expressão ou se, mais uma vez, devemos usar o princípio de ser intolerantes com os intolerantes? A disseminação de mentiras pode decorrer da ignorância de quem a cria ou repassa ou pode ser intencional, interessada. Ambas tem potencial para causar grandes estragos na vida das pessoas e nos ambientes sociais. Gritar “fogo” dentro de uma sala lotada de cinema ou teatro, além de causar tumulto, pode resultar em mortos e feridos. Acusar alguém erroneamente de ter assassinado ou abusado de uma criança pode gerar linchamentos de inocentes. No mesmo sentido, que tratamento deve ser dado a quem promove discursos antivacinas numa época de pandemia? Devemos tolerar aqueles que divulgam ou vendem tratamentos que a ciência já comprovou serem ineficazes? Não se trata aqui  de ter opiniões sobre a eficácia ou não de tratamentos e vacinas, mas de aderir ao melhor protocolo proposto por aqueles que têm as condições de decidir. E o que dizer de quem produz e divulga vídeos mentirosos que retratam pessoas públicas ou não em situações constrangedoras, algo que deve se acentuar com o deep fake? Sempre que tiverem potencial de prejudicar outras pessoas ou beneficiar alguns em detrimento de outros, esta categoria de mentiras deve receber o mesmo tratamento que Karl Popper reservava para os intolerantes. Porque não estão submetidos a argumentações racionais.

E, para finalizar este primeiro ponto, quais são os limites para a liberdade de proferir discursos de ódio contra outros? Trata-se dos discursos racistas, sexistas, nazistas, supremacistas, homofóbicos etc. Além de atentar contra a dignidade das pessoas agredidas, eles têm o potencial de promover a violência contra esses grupos e muitas vezes propõem a própria eliminação de quem é diferente, como são hoje os casos entre alguns grupos de palestinos e de judeus no conflito entre Israel e o Hamás. Adicionalmente, especialmente na questão da escolha de gênero, os discursos de ódio atentam contra uma outra liberdade, a de cada um escolher o que quer ser e o que quer fazer de sua vida. Aqui parece que adentramos o espaço da abordagem dos direitos básicos trazidos por Amartya Sen em seu livro Desenvolvimento como Liberdade: o direito de sobreviver, de ter uma vida digna, de fazer escolhas. Ou seja, os direitos necessários para poder exercer os direitos às liberdades superiores, como a da expressão. Novamente aqui me parece que o paradoxo da tolerância de Popper ajuda a decidir até onde podemos tolerar o intolerante.

A segunda questão a que me referi acima é a da assimetria de poder no exercício da liberdade de expressão. O problema aqui diz respeito ao poder que algumas pessoas e corporações têm para interferir na vida de indivíduos e de toda a sociedade. Não se trata apenas de influência, mas de capacidade para modificar opiniões, crenças e comportamentos das pessoas, assim como a de gerar violência e eliminação de outras liberdades, tanto em função da vulnerabilidade destas, quanto em razão do acúmulo de informações de todo tipo que corporações, especialmente as grandes redes sociais, possuem e manipulam para fins mercadológicos ou não. A sociedade deve impor limites ou algum tipo de controle sobre esses poderes? No caso do poder de indivíduos, me parece que a questão é mais fácil. As redes sociais propiciaram o surgimento do fenômeno dos influenciadores sociais. Influenciadores sempre existiram. Trata-se dos pequenos e grandes líderes da vida analógica, cujos discursos e estratégias são responsáveis por iniciar e organizar a ação e conduzir indivíduos, organizações ou nações para caminhos saudáveis ou não. O que aconteceu é que eles se multiplicaram com o advento das redes sociais e hoje quase qualquer um, a partir de seu smartfone, tem o potencial de se tornar um influenciador, um líder. Os limites para a sua atuação me parece que podem ser definidos dentro do que tentei expor nos parágrafos anteriores acerca da liberdade de expressão e do paradoxo da tolerância. Não tenho dúvidas de que os discursos de ódio, a promoção da interrupção da liberdade e a disseminação de mentiras precisam ser contidas e suprimidas. Assim, quem sistematicamente cruza estas fronteiras, deve ter contido o seu poder de se expressar livremente. Duas outras questões surgem aqui: a primeira relativa ao terceiro ponto acima, ou seja, quem tem o direito de decidir o que pode e o que não pode ser coberto pela liberdade de expressão. A segunda diz respeito a quando ela deve ser contestada. Antes de sua publicação, correndo-se o risco de censura prévia, ou depois? Não abordarei estes dois pontos aqui e prometo trazer eles à tona em algum momento futuro.

O problema se torna mais complexo para o caso das redes sociais. Entre outras, duas questões me surgem de imediato: Qual deve ser o papel e a responsabilidade das próprias redes para contribuir no estabelecimento de limites à liberdade de expressão de que tratamos acima? E, se devemos estabelecer limites para a coleta, manipulação e comercialização de informações sobre nossas ações, comportamentos, opiniões, falas, imagens, desejos etc. para fins de qualquer natureza, lucro ou poder? Ambas as questões geram enormes debates ao redor do mundo democrático. O debate só não existe nos Estados totalitários, em que as próprias plataformas são controladas pelo Estado. Não tenho dúvidas de que as plataformas devem ser convocadas a contribuir para o que pode e o que deve ser distribuído através delas, bem como devem ser responsabilizadas quando os controles falham. Não dá para ser uma terra de ninguém, em que alguns lucram em razão de conteúdos falsos. Aqui não me refiro apenas às questões da vida política e cultural das sociedades, mas também ao poder que discursos e influenciadores têm sobre pessoas mais vulneráveis, como crianças e adolescentes. São cada vez mais frequentes as situações que levam estas pessoas a se submeter a abusos sexuais e mesmo suicídios. Nesta área, o que se observa é que algumas plataformas têm feito esforços para a contenção de abusos. Os esforços, entretanto, não são iguais entre elas. Mas um ponto para o qual os debates polarizados atuais dão pouca atenção é o da obtenção, manipulação e comercialização de dados das pessoas com objetivos preponderantemente econômicos, mas também de controle da vida dos cidadãos. Este debate é o que está por trás da recente decisão do governo dos EUA sobre o banimento do Tik Tok. Entendo que aqui também devem ser discutidas limitações às estratégias e ações das corporações que estão por trás destas plataformas. Entretanto, este é um tema excessivamente complexo e que deve ser assunto para um próximo artigo. Por enquanto, convido todos a ler o talvez já desatualizado texto de Zoshana Zuboff, Capitalismo de Vigilância. O “desatualizado” vem do fato de ter sido escrito em 2019, alguns anos antes do Chat GPT e do enorme salto da Inteligência Artificial representado pelos modelos de Large Language Models. Este evento potencializou em muito as capacidades de vigilância interessada destas corporações. Prometo trazer aqui, em algum momento futuro, um resumo das ideias desta brilhante pesquisadora.

Finalmente, mas não menos importante, coloca-se a questão de quem decide o que está coberto pelo manto da liberdade de expressão e quando. Este problema é tão importante que, muitas vezes, ele se sobrepõe aos demais. Especialmente quando há ausência de regulamentações de quem decide quem decide. Ou seja, no vácuo, alguém se arvora o direito de decidir, mesmo que não se tenha decidido que esse alguém pode decidir. No Brasil, esta discussão está na base dos embates entre parte do Congresso e alguns ministros do STF. O problema fica ainda maior quando a polarização política está na base da discussão. Por isso, urge que congressistas e sociedade se envolvam racionalmente e eticamente nessa discussão. Uma vez definidos os princípios, cabe aos demais aceitar! Esta é máxima de viver em sociedade.

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1 Comment


valdirferraz
Jun 14, 2024

Li com atenção e interesse esse artigo muito oportuno para os dias que vivemos.

Inexiste a dialética nos debates - agressões- que se pratica hoje, comumente nas redes sociais.

Liberdade de expressão, sempre! Mas com responsabilidade e seriedade. Parabéns pela profundidade e clareza abordada sobre esse complexo tema dos dias de hoje. Abraços

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