PARA LER DOSTOIÉVSKI – Versão resumida
- celsonhupfer
- 5 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Assim como outros autores que produziram uma obra volumosa e variada, Dostoiévski pode ser lido de diversas maneiras. Pode-se optar por ler seus romances mais famosos, ler aleatoriamente textos menores e maiores, ou aprofundar-se em sua produção. Este último foi o meu caso. Li e reli alguns de seus romances várias vezes e, no caso de alguns trechos em especial, como A Lenda do Grande Inquisidor, parte de Os Irmão Karamázov, algumas dezenas de vezes.
Meu propósito aqui é compartilhar com os leitores a minha experiência e, dessa forma, ajudar a estruturar a leitura de sua obra, quer ela seja de um ou outro romance, quer ela seja mais abrangente. O presente texto é o resumo de um artigo mais longo, que coloquei também no meu blog. Em tempos de vídeos curtos e textos de algumas linhas do Insta, Tik Tok ou X, sei que as pessoas em geral não gostam de se dedicar à leitura de artigos muito longos, como eu os habitualmente faço. Assim, espero deixar no leitor que ler este artigo um certo gostinho de quero mais e decidir-se a ler o texto maior também.
Para ler Dostoiévski, algumas considerações iniciais são importantes. É necessário estar disponível para enfrentar personagens bastante complexos e de grande profundidade psicológica, apreciar o entendimento de relacionamentos às vezes caóticos e dispor-se a mergulhar na discussão de problemas sócio culturais muito relevantes. Para tanto, é necessário conhecer um pouco da história e das vicissitudes da personalidade do próprio autor, seus conflitos e valores fundamentais, algo que recomendo sempre que o leitor se decide mergulhar na escrita de um novo romancista. Além disso, é importante que se saiba em que contexto sócio cultural esta obra foi produzida.
Dostoiévski viveu de 1821 a 1881. Sua história de vida é marcada por alguns eventos e características extremamente importantes para sua literatura. Filho de um pai muito rigoroso e que teria sido assassinado pelos seus servos da pequena propriedade que possuía, recebeu instrução desde cedo em latim e francês, religião ortodoxa, leitura da Bíblia, história russa e os clássicos da literatura ocidental, como Balzac, Vitor Hugo, Goethe, Púchkin, entre outros. Depois de abandonar a carreira militar, para a qual havia estudado em São Petersburgo, tornou-se escritor e acabou por ingressar num grupo radical denominado Círculo de Petratchévski. A participação neste círculo resultou em prisão e condenação à morte. A pena de morte foi, no entanto, comutada no exato momento do fuzilamento, para prisão e serviços forçados por 10 anos na Sibéria. As experiências de quase morte e dos anos de cativeiro teriam lhe ajudado na compreensão do interior do povo camponês pobre de toda a Rússia e que estará presente em todos os seus textos a partir de então. Seus grandes romances, como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov, Os Demônios e O Idiota, foram todos escritos após o período na Sibéria. Eles representam as concepções de Dostoiévski sobre os limites da maldade humana, juntamente com sua busca por afirmar o livre arbítrio e os valores religiosos do povo camponês eslavo e da Santa Mãe Rússia. Muitos de seus livros são ataques ao niilismo e racionalismo, que haviam ocupado as mentes da juventude e intelectualidade russas, tendências estas importadas do Ocidente. Lutava tanto contra o radicalismo socialista e racional, quanto contra o tecnicismo industrialista do capitalismo em formação. Compreender Dostoiévski exige que o leitor tenha isto sempre em perspectiva.
Sua literatura é dividida em três grandes momentos: as novelas da juventude, as obras de transição e os romances da maturidade. As obras desta última fase são consideradas as mais importantes por suas influências sobre o pensamento europeu do século seguinte. Beberam água em sua literatura grandes filósofos como Nietzche, a psicanálise de Freud e os movimentos Existencialista e Surrealista, entre outros. Vários de seus principais personagens são considerados verdadeiros arquétipos da psicologia humana, como O Homem do Subterrâneo, de Memórias do Subterrâneo, Raskólnikov, de Crime e Castigo, Ivan Karamázov, de Os Irmãos Karamázov e Stavróguin e Verkhovênski, de Os Demônios.
Para quem deseja ingressar na obra deste grande e talvez maior escritor de toda a literatura universal, minha recomendação é iniciar por sua obra de transição, em especial Memórias da Casa dos Mortos. Trata-se de talvez o seu romance mais autobiográfico, uma vez que relata os personagens e acontecimentos que observou nos anos de Sibéria. Na sequência, sugiro ler duas obras básicas, também da transição, para compreender contra quem a sua literatura se dirigia: Memórias do Subterrâneo e Notas de Inverno sobre Impressões de Verão. O primeiro texto, extremamente profundo, revela a luta de Dostoiévski contra o pensamento niilista de então, através de um personagem que se rendeu ao racionalismo, mas que, em função de uma hiperconsciência, não consegue deixar de perceber os impactos desta rendição sobre sua personalidade e sobre a sociedade. O segundo, revela o outro objeto contra o qual lutava, o também racionalismo utilitário do tecnicismo e industrialismo, que via na ciência e na técnica os únicos valores da sociedade moderna.
A partir daí, acredito que o leitor estará preparado para os grandes romances de Dostoiévski. Minha sugestão é começar por Crime e Castigo, um dos poucos de seus romances que parece ter um roteiro mais lógico. Na sequência, sugiro Os Irmãos Karamázov, para muitos o seu mais importante livro (foi considerado por Freud a melhor obra da literatura universal de todos os tempos). Nesta linha ainda, deixe para o final Os Demônios. Este é um texto muito complexo, com uma infinidade de personagens, capazes de atrocidades quase inconcebíveis. Para se ter uma ideia, um de seus capítulos, A Confissão de Stavróguin, foi retirado do romance pelo próprio Dostoiévski, em razão da extrema maldade do personagem, capaz de produzir asco nos leitores mais sensíveis.
O romance O Idiota é uma literatura à parte. Ele não obedece um roteiro lógico e ordenado, se perde em minúcias aparentemente desnecessárias e retrata um personagem difícil de definir: um débil mental? Um epilético apenas? O Cristo? Seu personagem central, o Príncipe Míchkin é uma espécie de reencarnação do Cristo das primeiras comunidades, procurado por todos para decisões importantes, ao mesmo tempo em que sofre a zombaria destes. Capaz de sofrer o sofrimento dos outros, sejam eles pessoas de bem ou os piores sujeitos. Vale muito a leitura.
Finalmente, O Sonho de um Homem Ridículo é um texto bastante reduzido para os padrões de Dostoiévski. Sua leitura me parece obrigatória, porque é aqui que a maldade humana tem sua única oportunidade de redenção em toda a literatura de Dostoiévski. Esta redenção se dá pelo amor cristão, aquele das primeiras comunidades do cristianismo.
Boa leitura a todos.
Muito bom !!