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De Fourier a Black Mirror: Utopias e Distopias do Não-Trabalho

  • celsonhupfer
  • 2 de set.
  • 13 min de leitura

Praticamente todas as mitologias e tradições religiosas do mundo antigo construíram narrativas para retratar o sonho de um mundo sem trabalho ou de uma existência natural sem esforço físico nem sofrimento. Esse ideal costuma assumir a forma de um tempo primordial de abundância e harmonia, frequentemente seguido por uma queda, um castigo ou uma separação do divino, que inaugura a obrigatoriedade do trabalho. Na mitologia grega, Hesíodo narra a sucessão de idades do homem, começando com a idade do ouro, uma era paradisíaca onde o trabalho não era necessário, e culminando com a idade do ferro, marcada por sofrimento, injustiça, mentira, trabalho árduo e decadência moral.  No Gênesis da tradição judaico-cristã, o Éden de Adão e Eva é marcado pela disponibilidade abundante de alimento, a convivência harmoniosa entre animais e humanos e a inexistência de morte ou dor e da obrigação ao trabalho. Também são encontradas narrativas similares nas mitologias mesopotâmicas (Gilgamesh), egípcia (Era de Osíris) e mesmo na mitologia tupi-guarani aqui no Brasil (Terra sem males). Em muitas dessas narrativas, a desobediência que produz o fim da utopia, é representada pelo desejo de conhecimento dos homens, o que os condena a “comer o pão com o suor do seu rosto”.

O desejo de um mundo sem trabalho manteve-se presente em toda a história da civilização. No século XIX, com o avanço da Revolução Industrial e o surgimento das ideologias socialistas, o desejo floresceu e tornou-se sonho poderoso, com a construção de utopias que impulsionaram revoluções ao redor do mundo. Mas, como também nos ensina a mitologia, um desejo quando não é adequadamente elaborado pode transformar-se em desgraça para quem o alcança. Assim, Sibila de Cumas viu realizar-se seu desejo de vida eterna, mas esquecera-se de pedir também a juventude e viu-se condenada a um envelhecimento sem fim. Da mesma forma, essas novas utopias que se fundavam na racionalidade científica e nos avanços da tecnologia para projetar um mundo sem trabalho, viram surgir, em seu lugar, as ameaças do desemprego nas sociedades capitalistas e da ausência de liberdade nas socialistas. Deixaram de ser utopias e tornaram-se distopias no século XX e sobretudo do século XXI. O sonho de não trabalhar virou angústia diante do desemprego, em função da automação acelerada, da inteligência artificial e do desemprego estrutural. Multidões viram-se condenadas à precarização e a depender da assistência do Estado para sobreviver. Ao mesmo tempo, crescia a sensação de uma vida inútil, sem sentido, fazendo explodir os indicadores de doenças mentais não só entre os desempregados, mas também naqueles que agora se viam ameaçados pelo desemprego.

A literatura e o cinema anteciparam esse futuro, às vezes como promessa de libertação (utopias), outras como ameaça de terror e aprisionamento (distopias). As utopias não foram apenas produto de ficção. Elas também alimentaram as ideologias de diversas bandeiras. As distopias, por sua vez, servem de alerta para um futuro que pode se apresentar. Entre os extremos de Charles Fourier e Black Mirror, desenha-se uma história paralela da modernidade: aquela contada pelas fantasias que projetamos e pelos pesadelos que tememos.

A utopia técnica e sua crítica

O termo utopia apareceu pela primeira vez no livro homônimo de Thomas More, escrito em 1516, e significa tanto “lugar nenhum” quanto “bom lugar”, jogando com a ambiguidade entre um ideal e um inatingível. No século XIX, pensadores como Charles Furrier, Saint-Simon, Robert Owen e Edward Bellamy, imaginaram sociedades onde o trabalho seria reorganizado ou eliminado pelo avanço da tecnologia. A obra Looking Backward (1888), de Bellamy, previa um século XXI em que as máquinas fariam quase tudo, e as pessoas viveriam com tempo abundante para cultura, arte e filosofia. O século XXI chegou e apenas uma das “pernas” de suas previsões (a do não-trabalho) parece próxima de se realizar, mas apresenta-se como ameaça de desemprego e desespero. Estas utopias, especialmente de Furrier e Saint-Simon, foram as bases do que Marx chamou de socialismo utópico. Algumas vezes, como na obra de Saint-Simon, traziam também um forte conteúdo religioso.

Mesmo Marx e Engels, que rejeitavam o “utopismo” dos socialistas anteriores, carregavam elementos utópicos em seu desenho de uma sociedade comunista idealizada. Na sua ideia de comunismo, não existiriam classes sociais nem Estado, o trabalho seria livre, criativo e cooperativo e cada um contribuiria de acordo com sua capacidade e receberia conforme sua necessidade (Manifesto Comunista). Para críticos, a utopia estava no coração do marxismo, não como fantasia, mas como esperança ativa e motor da história, para alguns, ou como ameaça perigosa que, ao tentar realizar-se, justificava os regimes totalitários, para outros.

Ainda no mesmo século XIX, algumas vozes se levantaram contra o que estava nas bases das ideias utópicas. Elas vinham basicamente da literatura de autores como Dostoiévski e Tolstói. A crítica de Tolstói tinha um cunho mais espiritual e cristão radical contra a sociedade moderna e suas promessas de progresso técnico e felicidade coletiva. Foi de Dostoiévski, no entanto, que vieram as críticas mais ácidas, especialmente porque essas utopias imaginavam a superação de tudo aquilo que ele considerava meios essenciais para alcançar a felicidade: o trabalho árduo, a dor e a liberdade trágica. Para ele, não era possível eliminar o sofrimento humano e a dor por meio da organização racional da vida e do progresso técnico. A utopia, conforme era proposta, mata o livre-arbítrio e, assim, elimina também o direito de errar, de sofrer e de se rebelar. Mesmo se viver em um palácio de cristal, o homem destruirá tudo só para afirmar sua liberdade, pois “o homem é estúpido, mas quer ser estúpido do seu jeito” (O Homem do Subterrâneo).

A história tomou outro rumo e as utopias, que sustentaram durante anos os ideais socialistas, transformaram-se em ameaças distópicas na literatura e no cinema do século XX e XXI, levando ao que Enzo Tranverso denominou de Melancolia de Esquerda (2016), a inexistência de novos propósitos para as revoluções sociais.

 

A distopia do controle

Em oposição à utopia, o termo distopia designa uma visão negativa do futuro, geralmente marcada por opressão, controle, desumanização, miséria e totalitarismo. Paradoxalmente elas são a consequência, na literatura, das tentativas de construir a sociedade ideal, como as dos regimes socialistas e fascistas do século XX.

A obra Nós, de Yevguêni Zamiátin, é amplamente reconhecida como a primeira grande distopia literária do século XX. Escrita em 1920 e publicada pela primeira vez em 1924, fora da União Soviética (onde permaneceu proibida até 1988), ela é uma crítica sistemática ao totalitarismo racionalista, à supressão da individualidade, ao estado absoluto e ao controle do tempo, dos corpos e do pensamento. Estes tornaram-se os elementos essenciais das distopias seguintes, como 1984 e A Revolução dos Bichos, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Na sociedade perfeita de Admirável Mundo Novo (1932), todos vivem sem sofrimento – e sem liberdade. O trabalho é rigidamente dividido, geneticamente programado e emocionalmente compensado com doses regulares de prazer químico. A ausência de conflito é conquistada ao custo da alma.

Já em 1984 (1949), Orwell descreve um regime totalitário em que o trabalho serve à vigilância, não à produção. O emprego não é meio de sustento, mas de controle. O cidadão trabalha não para viver, mas para ser vigiado — e, em última instância, para ser destruído. A Revolução dos Bichos (1945), por sua vez, retrata uma sociedade em que a frustração de uma revolução vê o poder ser usurpado por uma elite manipuladora da informação. Passa a ser controlada por essa elite e por uma força policial, subjugada, forçada ao trabalho incessante e à privação de praticamente todas as necessidades, inclusive de alimentos.

Em todos esses casos, o não-trabalho e o trabalho alienado simbolizam o esvaziamento do humano.  Apesar de os críticos associarem estas distopias ao que acontecia por trás da Cortina de Ferro dos regimes comunistas do século XX, elas parecem prenunciar um mundo para o século XXI de falta de trabalho para todos, crescente uso da tecnologia para substituir atividades humanas (mesmo intelectuais), abandono dos indivíduos aos instrumentos de proteção (atenuação?) social e ampliação da vigilância pela combinação entre redes sociais, hábitos de consumo e inteligência artificial. Essa vigilância, em seus primeiros anos, parecia ter apenas o propósito de apropriação do desejo fabricado nos indivíduos pelo uso dos algoritmos e destinado ao lucro privado das big techs, como sugeria em 2019, Shoshana Zuboff, em seu A Era do Capitalismo de Vigilância. Rapidamente, no entanto, a vigilância passa cada vez mais a atuar também sobre os corações e mentes das pessoas, como evidenciam as iniciativas de controle da liberdade de expressão (mídia) e de pensamento (redes sociais), das universidades e da atividade científica. Exemplos podem ser encontrados tanto em regimes altamente controlados, como a China, e em democracias recentes ou tradicionais, como Hungria, Turquia e EUA.

O apocalipse do sonho e o encontro com a crueza

As utopias recebem sua pá de cal pelas mãos das obras da literatura e do cinema do século XXI. A queda, sem qualquer tipo de revolução social, do Muro de Berlin e a derrocada da União Soviética nos anos finais do século XX, representaram para as esquerdas o fim do sonho igualitário pregado por suas ideologias. É verdade que esses eventos não resultaram no fim da história, como projetava Francis Fukuyama em O Fim da História e o Último Homem, de 1992, mas cobriram com cinza a ideia sempre adiada de que a próxima revolução venceria o capitalismo e todas as formas de imperialismo.

Em geral, as novas distopias apontam para um mundo em que o trabalho é substituído pela tecnologia, pelos robôs e pela IA, as relações e as emoções são mediadas por algoritmos, onde vigilância e controle social são imperativos de estados empresariais e a liberdade desaparece, talvez até para as elites dominantes. Selecionei algumas dessas distopias que me parecem ter um pé fincado nos maiores temores de nossa sociedade contemporânea:

1)      Onde o emprego acabou e sobrou a solidão

Em História de Amor Supertriste e Real (2010), Gary Shteyngart descreve um futuro próximo de humanos hiper-conectados e viciados em tecnologia, em que um homem solitário (o protagonista) busca conexão real em meio ao caos da vigilância, superficialidade e declínio social. O livro mistura humor e tragédia para mostrar a alienação causada pela tecnologia, redes sociais, IA e automação, que desumanizam as relações e a própria existência individual. Apesar de falar de futuro, este pode estar efetivamente muito próximo – talvez semana que vem!

A economia dos EUA está em ruínas, à beira da falência, em função do alto endividamento do Estado (algo parecido com os alertas de economistas para o crescimento explosivo da dívida pública americana hoje?) e, por isso, submissa aos credores, especialmente China e Noruega. A vida é controlada pelos interesses dos monopólios, que atuam na segurança, meios de comunicação, partidos políticos, tecnologia, finanças etc. Somente existem empregos valorizados nos setores financeiro, varejo e mídia. O setor financeiro domina, mas os empregos mais disputados não passam de atividades especulativas, como a venda de promessas de vida eterna para os “High Net Worth Individuals” (indivíduos de alta renda), na prática um trabalho que beira o charlatanismo científico. O trabalho no varejo é frequentemente levado ao absurdo de um marketing altamente sexualizado, que não produz qualquer valor real e somente reforça o consumo. O trabalho na mídia é, na prática, um culto ao branding pessoal, em que o trabalho se tornou uma extensão do espetáculo digital, também muito sexualizado, cujo objetivo é a avaliação positiva (espécie de likes das redes sociais de hoje).

As atividades valorizadas são para muito poucos. Estes ainda participam do consumo. A grande maioria das pessoas, no entanto, é composta por uma massa de indesejáveis, endividados e sem função econômica, controlada e vigiada com extrema brutalidade pelas polícias do estado empresarial. Há, claro, trabalhadores “reais”, executado por imigrantes e subempregados, que são praticamente invisíveis no romance, mas que ainda sustentam o funcionamento das cidades decadentes.

Os protagonistas, representados por esta elite de segunda classe que ainda possui um trabalho valorizado socialmente, vivem sob o temor da demissão, que representa a morte social – ser um pária em uma sociedade em colapso, onde os desempregados são expulsos dos espaços urbanos ou marginalizados de forma brutal. Quem não está integrado ao sistema de consumo e produtividade aparente não tem valor e não tem lugar. Por isso, enquanto não sucumbem, sua luta é para aumentar seus scores sociais.

2)      A linha invisível entre quem trabalha e quem não existe

A série brasileira 3% (Três por cento), criada por Pedro Aguilera, em 2016, descreve também um futuro distópico, representado por uma sociedade extremamente desigual e radicalmente dividida. O Continente é um lugar de escassez, precarização e pobreza, onde a população luta pela sobrevivência e por uma eventual oportunidade de melhorar de vida. Em contrapartida, em Maralto vivem os 3% da elite próspera e tecnologicamente avançada, somente possível para aqueles que passam por um rigoroso processo seletivo. O Processo funciona como uma prova de seleção profissional e moral, em que os critérios centrais não são a inteligência e habilidades técnicas, mas uma espécie de aderência à ideologia dominante do mérito e do trabalho (a semelhança com que Trump escolhe seus colaboradores é mera coincidência). Diferente do que acontece no mundo real de nossos tempos, pertencer à elite não depende de hereditariedade ou de privilégios diretos, mas da capacidade de se submeter à lógica competitiva, da renúncia às relações de solidariedade e da aceitação das regras de controle e vigilância. A série é, portanto, uma crítica ácida à promessa neoliberal de uma sociedade meritocrática, que, na prática, é excludente, insensível, fundada numa lógica em que o trabalho não conduz à emancipação, mas à servidão e exclusão, aquilo que Byung-Chul Han denomina de autoexploração e Foucault compreende como internalização das regras do sistema ou biopoder.

3)      Entre likes e méritos: a mercantilização do eu e o desaparecimento do trabalho

Em alguns episódios da série Black Mirror, de Charlie Brooker, o trabalho ou desapareceu ou foi substituído por atividades sem sentido, cujo objetivo é produzir valorização social, uma espécie de score que dá acesso a bens, empregos, moradia e transporte.

O episódio Nosedive (Temporada 3, Episódio 1- 2016), retrata uma sociedade que funciona com base num sistema de avaliações sociais, o que faz com que as interações sejam sempre superficiais e interessadas e o controle é disfarçado de meritocracia. Nessa sociedade, em que não apenas a mercadoria é fetichizada, as relações e emoções também são moedas e o indivíduo passa a trabalhar para transformar sua própria personalidade em mercadoria. As emoções são imagens destinadas a serem classificadas e monetizadas, onde o indivíduo é seduzido pela submissão voluntária, alimentando o sistema de ratings. O sujeito é finalmente o empreendedor de si mesmo, como sugere Byung-Chul Han. A lógica de produzir-se como mercadoria para agradar ao sistema e ao público é internalizada, como as notas aos motoristas de aplicativos ou a quantidade de likes e seguidores nas redes sociais.

Outro episódio, Fifteen Million Merits (Temporada 1, Episódio 2 – 2011), apresenta uma sociedade em que as pessoas vivem em cubículos revestidos por telas e passam o dia pedalando bicicletas ergométricas para gerar energia e ganhar “méritos”, a moeda digital do sistema. Depois que o protagonista do episódio vê fracassar seu esforço de ajudar uma amiga a obter uma vida melhor em um show de talentos, desiludido e revoltado, ele decide voltar a pedalar intensamente para reunir méritos suficientes para uma nova chance no reality show, desta vez para ele mesmo. Ele invade o palco não para cantar, mas para denunciar a injustiça do sistema. Os juízes, no entanto, oferecem ao personagem a oportunidade de transformar seu discurso em uma performance semanal, neutralizando a revolta e transformando-a em mais um produto para o espetáculo. O episódio revela, além da valorização do trabalho sem sentido, a capacidade do mercado de cooptar a crítica e de transformá-la em novos produtos de consumo. O trabalho que conta é o que pode ser consumido rapidamente, mesmo que ausente de significado. Ao mesmo tempo, tudo o que começa como desafio ao status quo, rapidamente é absorvido e transformado em nova mercadoria para o consumo.

Se Não Há Trabalho, Não Há Futuro? Por uma Outra Imaginação Social

Se as utopias do século XIX e início do século XX carregavam a esperança de que o avanço técnico libertaria a humanidade do peso do trabalho, as distopias do século XXI revelam uma ironia dolorosa: a tecnologia não eliminou a servidão, mas a ressignificou e transformou-se em novas formas de controle e precarização. O não‑trabalho tão almejado tornou‑se não o descanso ou a realização espiritual e humana, mas uma condenação ao descarte social. O trabalho que sobrou subsiste como espetáculo, simulacro ou moeda de troca para sobreviver às regras invisíveis de uma economia digital e desigual.

E por que isso aconteceu? A promessa emancipatória, para realizar-se, precisava de uma distribuição mais equitativa dos ganhos tecnológicos e econômicos, que não aconteceu. Pelo contrário, nos últimos 50 anos, enquanto a automação e a inteligência artificial ampliaram exponencialmente a eficiência e a riqueza global, a desigualdade cresceu em igual velocidade. No Brasil, por exemplo, a metade mais pobre da população detém menos de 1% da renda total, enquanto o 1% mais rico concentra cerca de metade dela. No plano global, relatórios como o da Oxfam apontam que, em 2023, 1% das pessoas mais ricas do planeta detinha mais que o dobro da riqueza de 90% da população mundial. O avanço da tecnologia não criou uma sociedade livre e igualitária, mas uma camada cada vez menor e mais poderosa de privilegiados, enquanto uma maioria crescente passou a disputar as sobras ou a sobreviver à margem do sistema. Não é de graça que a desigualdade voltou a ocupar um lugar central na pesquisa social e na economia, como retratam as obras de Thomas Piketty, (O Capital no Século XXI), de Branko Milanović (Visões da desigualdade – Da Revolução Francesa ao Fim da Guerra Fria) e de David Graeber e David Wengrow (O Despertar de Tudo – Uma Nova História da Humanidade), entre outros.

As distopias ganharam destaque não por simples pessimismo ou por um certo terror futurista. Elas são uma representação crítica e necessária do presente e desse futuro ameaçador. De Orwell a Huxley, de Zamiátin a Black Mirror, a literatura e o cinema funcionaram e funcionam ainda como alertas para o que somos e para o que podemos nos tornar quando tecnologia e economia servem menos à humanidade e mais às forças da apropriação de seus ganhos. O não‑trabalho não conduz à realização humana ou ao lazer inteligente, mas à precarização, à invisibilidade e ao descarte social. Se antes a ideia era não precisar trabalhar, agora é não poder trabalhar e, por consequência, não existir.

A questão é: estamos condenados a viver sob a ameaça de uma distopia ampliada, em que quem trabalha é cada vez mais alguém substituível ou que não tem como dizer que existe socialmente? Já que quem não trabalha simplesmente não existe. O desafio hoje não é apenas imaginar uma alternativa ao sistema atual, mas resgatar a capacidade de conceber uma nova utopia — talvez não a que nega o trabalho e a dor humana, mas a que os ressignifica para produzir solidariedade, autonomia e sentido de comunidade. Como se perguntava Dostoiévski, enquanto criticava a glorificação da tecnologia: uma vida sem sofrimento é possível? E, se for possível, ela é desejável?  Porque, como alertaram os pensadores e as ficções que percorreram este texto, não basta abolir o trabalho para nos tornar livres: é preciso antes imaginar para quem e para que queremos viver e produzir.

Há caminhos alternativos a serem pensados e construídos. A própria ficção não deixa de sugerir alternativas — comunidades pautadas pela solidariedade, pela autonomia e pela preservação do humano — enquanto as ciências sociais e a economia crítica oferecem caminhos para reconfigurar as relações entre tecnologia, trabalho e renda. Modelos de renda básica universal, redistribuição fiscal e democratização dos meios tecnológicos ganham destaque no debate atual como tentativas concretas de imaginar uma outra sociedade possível. A ficção traz inúmeras possibilidades, que não tratamos aqui, como o romance A Parábola do Semeador, de Octavia Butler, que descreve comunidades adaptáveis e resilientes, e o filme A Chegada, de Denis Villeneuve, que pensa a comunicação e o entendimento como caminhos para transformar a relação entre humanidade e tecnologia. Do lado das ciências sociais, vale citar os ensaios de David Graeber e Byung-Chul Han, cuja crítica à lógica do trabalho é substituída por uma aposta nas forças do cuidado e do coletivo.

Se as distopias dominam hoje o imaginário, isso não significa que o futuro deva ser irremediavelmente capturado por elas. Significa, sim, que temos nas mãos não apenas o desafio de interpretar e resistir às forças que tornam o presente tão excludente e desigual, mas também a tarefa de imaginar novas utopias para o século XXI — não mais pautadas pela ilusão de uma técnica salvadora ou pela apatia do não‑trabalho, mas pela conquista de uma vida coletiva mais justa, plural e humana. Soa ingênuo? Talvez! Deixo isso para um próximo artigo.

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2 comentários


sirlene
17 de set.

Uau! Que bom que ainda podemos ser ingênuos! Fiquei me perguntando se conseguiria chegar ao final do artigo sem começar a, literalmente, chorar de tristeza. São tempos realmente difíceis e desafiadores. Mas prefiro acreditar que o sofrimento traz transformação e que em algum momento conseguiremos achar um novo sentido pra tudo isso. Parabéns Celson!! Seus artigos trazem conhecimento, muita reflexão e são uma delícia de ler🙏

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celsonhupfer
20 de set.
Respondendo a

Obrigado Sirlene. Vivemos sim tempos muito difíceis e desafiadores. Infelizmente eu tenho uma visão meio sombria para o nosso futuro. Temos que procurar sentido sim, mas temos que viver com uma realidade que vai, a cada dia, retirando um pouco mais de humanidade de todos nós.

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