Recorrer à Memória
- celsonhupfer
- 18 de out.
- 9 min de leitura

A imagem do Angelus Novus, de 1920 do artista alemão Paul Klee, e que hoje pertence ao acervo do Museu de Israel, em Jerusalém, me capturou desde a primeira vez que li a Tese IX sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin. Impotente, de olhos arregalados, o anjo da história, como Benjamin a denominou, seguia seu rumo para o futuro empurrado por aquilo que hoje chamamos de progresso. Era totalmente incapaz de deter-se e de recompor os destroços deixados pelo caminho desse progresso, algo que já havia sido denunciado por Dostoiévski em sua descrição do Palácio de Cristal, mais de 50 anos antes. É dessa forma que me sinto frequentemente diante de um presente que se construiu sobre os escombros do passado e que aponta para um futuro aterrador: as ameaças de destruição nuclear e ambiental, o retorno da barbárie étnica e da lei do mais forte e a vigilância algorítmica que administra nossas mentes e escolhas. É verdade que a ideia de “destruição criativa” e que rendeu o Nobel de Economia de 2025 é atraente para o que denominamos desenvolvimento. Mas também é verdade que o custo desta destruição criativa muitas vezes cobra elevados preços sob a forma de milhões de mortes em guerras, deterioração do meio ambiente, redução dos graus de liberdade em prol da segurança e da conveniência de consumo e do desenvolvimento de tecnologias capazes de eliminar a vida humana na Terra. Entretanto, somos permanentemente arrastados para um amanhã em que o acúmulo de ruínas é sempre inevitável. Desta vez, o risco é não haver ninguém para retratá-lo. Por isso, recorrer à memória pode não ser um gesto de mera nostalgia, mas de resistência: uma maneira de lembrar que nem tudo começou agora e nem tudo precisa terminar como tragédia. Apesar de concordar em muitos pontos com a visão apocalíptica de Franco “Bifo” Berardi, em Pensar depois de Gaza, quero recusar a sua proposta de desertar. Uso a palavra quero, porque a razão está tendo que ser substituída em mim pela esperança ou pelo desejo.
Memória, silêncio e a sombra do futuro
Quando publiquei recentemente o texto Armagedon https://www.blogdocelson.com/post/armagedom-a-batalha-final, fiquei intrigado com o comentário de um colega que conheci há talvez mais de 20 anos atrás, quando fizemos juntos uma formação em Psicodrama. Naquela época, lembro que o Alberto Boraini se dedicava a compartilhar o que as deusas gregas tinham para oferecer às perturbações dos humanos da atualidade. Em seu comentário, Alberto lembrou que “a sabedoria ancestral nos salvaria, mas quem quer olhar para o passado?”.
A frase me acompanha desde então e me instigou a buscar compreender melhor o que Alberto estava querendo me dizer. Sempre fui um pessimista em relação ao futuro da humanidade, mesmo mantendo uma chama de esperança. Por isso, a interpretação de Benjamin para o anjo da história, os textos de Dostoiévski sobre o avanço do niilismo na sociedade de seu tempo, assim como a observação de Marx de que a história sempre se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, serviam de suporte para a minha própria interpretação de fenômenos contemporâneos: o espraiamento de um niilismo ignorante hoje, a vigilância algorítmica sobre nossas vidas e nossas decisões de consumo, a violência e o cinismo como modo de exercício do poder, o novo aprofundamento da desigualdade entre pessoas e nações, os ataques ao meio ambiente em nome do desenvolvimento e a retomada da escalada nuclear etc.
Penso no silêncio do meu avô, retratado no artigo que inspirou o comentário de Alberto. Ao voltar do front na Primeira Guerra Mundial, depois de anos nas trincheiras, enfrentando a fome, o medo, a doença e a morte de companheiros e inimigos, não era mais capaz de falar sobre sua experiência, que, afinal, como dizia Benjamin, não era transmissível, como se a guerra tivesse sequestrado a vida e a própria linguagem. Hoje, um século depois, pairam sobre nós não apenas a ameaça da guerra nuclear, que retratei no post, mas todos os fenômenos de que falei logo acima. Vivemos rodeados de telas, saturados de dados, mas somos incapazes de produzir uma narrativa que dê sentido ao que atravessamos.
Nesse vazio, a ancestralidade se apresentaria como um chamado, talvez não somente como ameaça do inenarrável e também não como promessa de redenção, mas como um fio de memória: um lembrete de que nem tudo começa e termina em nós. Há saberes, práticas e silêncios que sobrevivem aos colapsos. Talvez o retorno ao passado possa oferecer algum lastro quando tudo está à beira do nada.
Entretanto, é preciso reconhecer a crueza do presente. Acredito que a história não se repete apenas como tragédia ou farsa: agora ela se repete também como perversão consciente: as elites de nosso tempo – financeiras, judiciárias, políticas, tecnológicas – não apenas produzem desigualdade, violência e destruição. Elas o fazem com cálculo frio, sem vergonha, transformando a barbárie em método e espetáculo. Existem outros termos para se referir a indivíduos como Trump, Netanyahu, Putin, Maduro, Bolsonaro, Musk, para citar apenas aqueles que estão mais em evidência? É nesse cenário que precisamos pensar se existe ainda algum espaço para imaginar alternativas e o que elas realmente significam. Talvez o ancestral tenha algo a nos contar.
A ancestralidade como memória e gesto
Para responder à proposta de meu amigo, fui pesquisar um pouco quem estuda o tema da ancestralidade. Obviamente, estou longe de ser um expert no assunto e, por isso, peço que me perdoem antecipadamente pelo atrevimento. Há quem veja na ancestralidade um caminho de retorno ao que é essencial: um convite a reconectar os fios que nos ligam à terra, aos rios, aos outros, humanos ou não. Quem nos propõe isso é Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro Imortal da Academia Brasileira de Letras. Em textos como Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e O futuro ancestral, entre outros, Krenak nos lembra que os rios, “seres que sempre habitaram os mundos”, nos enraízam na vida e não na abstração e, por isso são detentores de saberes orgânicos. Isso nos lembra que o futuro não precisa necessariamente ser apenas uma aceleração e ruína: há modos de vida que persistem à margem da lógica predatória e que guardam lições sobre equilíbrio, comunidade e limite.
Na minha modesta opinião, é uma promessa que carrega riscos, uma vez que, quando transformada em slogam, a ancestralidade é cooptada e convertida em mercadoria e, quando é idealizada como salvação universal, perde sua força crítica. Sozinha não é capaz de enfrentar a máquina da globalização dos sonhos, das ideias, das vidas. Mas, como gesto simbólico, a ancestralidade tem potência. Pode ser um ato de recusa, um lembrete de que não somos apenas consumidores, algoritmos e estatísticas. Há algo que insiste em sobreviver em nós, mesmo quando tentamos apagar os vestígios do anjo da história.
Outras brechas de resistência
A ancestralidade não está sozinha nessa busca por sentido em meio ao colapso. Outros pensadores e movimentos propõem caminhos que, embora também me pareçam frágeis, oferecem espaços de respiro. Quase sempre, essas propostas partem de uma quase melancolia na análise do presente. Melancolia, aliás, está no título do livro de Enzo Tranverso, Melancolia de Esquerda: o luto pelo fim das grandes utopias depois da queda do Muro de Berlin pode ser uma oportunidade para uma nova consciência histórica, em que a recusa a esquecer as derrotas do passado substituiria a normalização da história contada pelos vencedores. De forma similar, pensadores do novo realismo contemporâneo, como Mark Fisher e Franco “Bifo” Berardi oferecem alternativas para furar este realismo. Fisher, que sugere que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, entende que a cultura pode abrir brechas no realismo capitalista e que outros mundos são imagináveis, mesmo que apenas como lampejos. Já “Bifo” nos propõe desacelerar, cuidar e criar redes afetivas que escapem, ainda que parcialmente, da lógica de exploração e destruição que o progresso acelerado apresenta. Mesmo pensadores menos recentes, como Richard Sennet e Zygmunt Bauman, já apontavam para a necessidade de um retorno à noção de comunidade, ideia que, à época, era interpretada quase que como um devaneio comunitarista dos hippies da década de 1970.
Obviamente, essas propostas não oferecem salvação nem prometem revolução. Talvez possam nos afastar do vazio total. Tanto que, em texto mais recente, “Bifo” (Pensar depois de Gaza) parece perder grande parte da esperança que manifestava poucos anos antes. O que ele denomina de ferocidade e crueldade como estratégias e ações de Estado e de povos, como forma de “reparar” sofrimentos do passado, representariam um novo “fim da história”: a memória se transforma em ressentimento e não permite que se evolua em termos civilizacionais, como estaria demonstrado pelo genocídio em Gaza. Desta vez, com a consciência de que armas nucleares estão nas mãos dos mais variados tipos de dementes e inconsequentes.
O risco da ingenuidade
Talvez os meus mais de 30 anos no árido mercado financeiro sejam a razão de eu sempre acreditar que os riscos podem ser mitigados, se bem calculados. O cálculo de risco, no entanto, pressupõe uma devida racionalidade, tanto do analista quanto do analisando. No entanto, as opções de enfrentamento do presente, isoladas ou somadas, me parecem incapazes de enfrentar de forma efetiva a brutalidade do presente, pelo menos de uma maneira racional. O mundo normalizou o cinismo e a perversão: a desigualdade obscena só faz crescer (ainda pretendo escrever sobre isso); a exploração do meio ambiente, que vinha sendo enfrentada, renasceu com fôlego total na extrema direita mundial e especialmente sob a segunda presidência de Donald Trump nos Estados Unidos (perfure, Baby, perfure); a violência tornou-se novamente método político (quando acreditávamos que o Holocausto havia ficado para os horrores do passado, somos sacudidos pelo extermínio palestino em Gaza) e a mentira transformou-se em linguagem pública travestida de liberdade de expressão. Que racionalidade pode ser reivindicada, quando o resultado é o extermínio dos outros e de si próprio?
Não acredito que as elites que comandam essa máquina sejam cegas ou ingênuas. Ao contrário, elas me parecem muito lúcidas, mesmo que não racionais. Como sugeriu Slavoj Zisek, “Eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem”. E o fazem porque podem. Tem consciência de que a destruição é um modelo de negócio, que o caos é ferramenta de poder, que a barbárie pode ser vendida como entretenimento. O mal no nosso tempo deixou de ser acidente para se tornar sistema. Minha ideia é de que não se trata apenas de uma razão cínica, como apontou Peter Sloterdijk em Crítica da Razão Cínica. O que comanda o nosso tempo é uma razão que eu chamaria de razão perversa: o que, se não a perversidade, explica divertir-se com a falta de ar de alguém acometido de Covid? Que palavras utilizar ante uma cena de soldados bombardeando ou metralhando pessoas famintas na fila da ajuda humanitária? E assim por diante.
Por isso, reconheço que falar em cuidado, ressonância, ancestralidade e retorno à comunidade pode parecer nada mais do que um gesto de beleza frágil, como uma vela acesa no meio de um vendaval. Mas é isso que se tem!
Entre o desespero e o gesto mínimo
Talvez seja esse o ponto: a vela nem sempre é apagada pela tempestade e, com certeza, não dá conta da tempestade. Mas, por um momento, ela permite enxergar, olhar de outra forma e viver com o absurdo. É o que propôs, lá atrás, Albert Camus, em seu O Mito de Sísifo: mesmo condenado a rolar, por toda a eternidade, a pedra até o topo da montanha de onde ela sempre rola de volta, Sísifo pode entender que cada descida da montanha para recomeçar a tarefa, é um momento de consciência. Ele sabe de sua condição e, ao saber, conquista uma espécie de liberdade interior. Uma aceitação lúcida da falta de um sentido último e, por isso mesmo, um espaço de liberdade para criar o novo. Não se trata de resignação, mas de revolta: continuar empurrado a pedra e não optar pelo suicídio, por exemplo, é um ato de desafio. E essa revolta é o que dá dignidade ao ser humano, porque nos permite viver sem ilusões, mas também sem desistir.
Assim como outros momentos de predomínio da razão perversa, a humanidade é capaz de refletir sobre si mesma e de recuperar a dignidade, mesmo quando as ameaças se apresentam cada vez como mais próximas do Armagedon.
O fio áspero da resistência
Vivemos tempos em que a história se repete como perversão lúcida. As elites globais operam com a frieza de quem sabe que não há limites e de quem se alimenta do caos que produz. Trump, Putin, Netanyahu, Bolsonaro, Orbán e outros não são anomalias, mas expressões dessa lógica, em que a brutalidade e o cinismo não precisam mais se esconder, porque já não encontram vergonha entre os seus e resistência suficiente do outro lado. Pelo contrário, o cinismo agora é perversão pura!
Ancestralidade, cuidado, ressonância, pluralidade, resignação lúcida não são caminhos de redenção, é claro. São germes mínimos, sussurros, que podem se transformar nas novas utopias. Me parecem ser as únicas resistências possíveis, mesmo que sejam apenas memórias de experiências, estas sim podem ser contadas. Assim, talvez não se precise seguir a sugestão de “Bifo” Berardi: “não se reproduza!”.
Não é otimismo barato. Acredito que seja uma certa lucidez amarga. Não salvaremos o mundo, mas talvez a gente possa impedir que ele se destrua de uma forma tão idiota. E, se o futuro realmente estiver na ancestralidade, talvez ela possa nos ajudar a lembrar que uma vez fomos humanos, animais sociais.



Excelente texto. Grandes reflexões e muita pesquisa. Parabéns, novamente.