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Armagedom - A batalha final

  • celsonhupfer
  • 23 de jul.
  • 6 min de leitura

Todos os anos, nas férias de verão, na pequena cidade de Horizontina, na fronteira gaúcha com a Argentina, próxima ao caudaloso Rio Uruguai, meus pais me despachavam para um período de visitas aos meus avós paternos e primos que moravam na mais minúscula ainda vila de Consolata, de apenas duas ruas de pouco mais de 400 metros cada. Os meses de janeiro e fevereiro costumavam ser pouco chuvosos e extremamente quentes, com a temperatura frequentemente passando dos 40 graus centígrados. Apesar dos pouco mais de 15 quilômetros que separavam a cidade onde eu morava e a vila onde viviam meus avós e primos, a viagem de ônibus demorava quase meio dia, quando tudo dava certo. O trajeto era percorrido no que chamávamos de ônibus “pinga-pinga” e não podia ser feito direto. Era necessário fazer baldeação na sede do município vizinho e, para não correr o risco de perder a conexão, a primeira parte era feita logo de manhã e a segunda no começo da tarde.

Eu devia ficar os primeiros três ou quatro dias na casa dos avós. Ali falava-se somente o alemão da Baviera, de onde eles haviam emigrado depois da Primeira Grande Guerra, fugindo da hiperinflação e do desemprego. Apesar da familiaridade com a língua alemã, eu tinha dificuldade para entender o dialeto, porque na minha casa, junto aos meus avós maternos, falava-se o que chamávamos de “plat deutsch”. Mesmo assim, eu adorava essa temporada, não somente pelos dias seguintes à visita aos avós, quando ia para a casa dos inúmeros primos que moravam nas colônias das proximidades. Os dias com meu avô Korbiniano eram especialmente deliciosos. Ele me lembrava aquele avô das revistas coloridas do Pinóquio, já nos seus setenta e poucos anos, cabelos brancos espetados, um bigodinho também branco e usando macacão de tecido bruto, trabalhando na pequena marcenaria nos fundos da casa.

Eu adorava ouvir suas histórias. Num daqueles verões, no entanto, uma das conversas me marcou por toda a vida, não pelo que foi dito, mas pelo que não foi falado. Estava então com pouco mais de 10 anos e era fissurado pelos livros da literatura juvenil gaúcha, como “O Prisioneiro da Montanha” de Fidelis Dalcin Barbosa e “Sepé Tiaraju”, de Alcy Cheuiche. Eram romances que misturavam as dificuldades dos primeiros colonizadores alemães em suas relações, normalmente difíceis e conflituosas, com os índios de tribos guaranis que estavam por lá há muito mais tempo. Eram estórias de aventuras, que embalavam a imaginação de alguém que se preparava para a adolescência.

Meu avô havia sido oficial de patente baixa da cavalaria do Exército da Alemanha e participara de diversas batalhas durante todos os quatro longos anos da Grande Guerra, nos fronts francês e belga. Acreditei que podia ouvir histórias reais de alguém que de fato as havia vivido e presenciado aventuras heroicas que eu poderia depois contar para meus amigos e alimentar a minha imaginação ainda infantil. Mas, naquelas férias, minhas perguntas e meu interesse ingênuo ficaram sem resposta. Eu insistia em ouvir e nada. Só silêncio e uma espécie de melancolia no seu olhar. Como compreender sua quietude diante dos meus olhos esperançosos e fascinados?

Foram necessários mais de 40 anos para que eu compreendesse o silêncio do vovô Korbinian e encontrei a surda resposta quando li pela primeira vez o ensaio, de 1936, do filósofo alemão Walter Benjamin,  “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”:

“Com a Primeira Guerra Mundial começou a tornar-se evidente um processo que desde então não mais cessou: as pessoas voltavam mudas do campo de batalha. Não mais ricas, mas mais pobres em experiências comunicáveis.”

O tema é retomado também em “Sobre o Conceito de História”, de 1940, em que Benjamin se refere ao “anjo da história”, retirado da obra “Angelus Novus”, de Paul Klee, de 1920, para falar da catástrofe acumulada do progresso e do papel do historiador revolucionário.

Meu avô era um dos mudos que não tinha experiências para comunicar. Para Benjamin, as guerras anteriores, embora trágicas, produziam sentidos. A Primeira Guerra Mundial, por seu horror técnico e industrializado, marca o início de um novo tempo, em que a experiência humana é esvaziada, a narrativa é silenciada e os indivíduos se tornam incapazes de dar forma ao que viveram. É o início do colapso da experiência como algo comunicável e coletivo.

Muitos anos depois reencontrei meu avô. Ele tinha vinte e poucos anos e falava comigo através de seu diário de guerra, que eu finalmente conseguira traduzir. Fora escrito em “Sütterlin”, um tipo de escrita cursiva alemã às vezes também chamada de gótico. As letras eram milimetricamente desenhadas e eu tinha passado anos tentando compreender o que ele havia desejado transmitir para nós, seus descendentes, ao retratar suas “experiências” na guerra, e que não conseguira contar para mim naquela conversa de infância. Trata-se de um lamento profundo da alma, como o poema Dulce et Decorum Est Pro Patria Mori”, de Wilfred Owen – a velha mentira ensinada aos jovens: “É doce e honroso morrer pela pátria”. A trincheira é o lugar da espera da morte, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem avançar um palmo sequer – morte que chega pelo cansaço, tifo, pneumonia, infecções, ratos: o horror que nos afasta cada vez mais de nós mesmos. Ele escreveu no dia 29 de julho de 1915: “Hoje, folheei estas páginas. Vi meus próprios pensamentos de meses atrás. Parecia um outro homem. Mais jovem. Mais humano. Agora, escrevo mais devagar. Com menos palavras. Com mais silêncio. Não sei se isso é sabedoria ou rendição. Talvez as duas”.

Optou pelo silêncio, que lhe dava paz!

O que fizemos nós depois disso? Não satisfeitos com os mais de 20 milhões de mortos na primeira guerra, entre soldados e civis, redobramos a aposta na guerra. A segunda matou mais de 70 milhões de pessoas, pela primeira vez mais civis do que soldados e culminamos com as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, quando a guerra já havia terminado. Era uma oportunidade para testar seu poder de destruição e morte, uma vez que, oficialmente, o Japão ainda não havia se rendido.

Inauguramos um longo período de guerras esparsas (Coréia, Vietnam, Bósnia, Afeganistão, Golfo etc.) e de uma paz sob a ameaça do Armagedom nuclear. Algumas vezes estivemos perto da eliminação quase total da vida humana na terra, pois os arsenais reciprocamente apontados não pareciam ser suficientes para a dissuasão. A queda do muro de Berlin e o fim da União Soviética pareciam para muitos indicar que estávamos na direção do “fim da história”: o capitalismo liberal e democrático estava pronto para ocupar todos os terrenos e nações.

Mas o sujeito humano é mesmo muito complexo. Novamente, estamos nós aqui temendo a nossa capacidade de realizar a nossa própria destruição. Figuras abjetas, narcisistas, egoístas estão em posição de poder nos mais diversos cantos do mundo – Putin, Bibi, Kim Jon-un, os Aiatolás do Irã, os terroristas do Hamas, Trump, Maduro etc. Até mesmo nós, povo que se caracterizava como a do “homem cordial”, nas palavras do historiador Sérgio Buarque de Holanda, tivemos o nosso aprendiz de ditador. Vários deles têm o dedo no gatilho e podem nos condenar ao Apocalipse.

Isto me motivou a ler “Guerra Nuclear – Um Cenário”, de Annie Jacobsen, um livro de 2024 e recém lançado no Brasil, indicado pela coluna de Mário Sérgio Conti. A partir de milhares de documentos oficiais, depoimentos e entrevistas para a própria autora, o livro se propõe a descrever os 72 minutos depois que um poderoso míssil balístico intercontinental é lançado de um veículo de 22 rodas estacionando na terra batida de algum campo aparentemente árido a 32 quilômetros de Pyongyang, a capital da Coréia do Norte. Uma vez confirmada a trajetória do monstro (que é como o míssil é chamado pelos analistas), que carrega uma ogiva nuclear de um megaton (67 vezes mais poderosa do que a que foi lançada sobre Hiroshima), apenas poucos segundos após o seu lançamento, cabia decidir se haveria ou não contra-ataque. Em poucos minutos, Washington desapareceria do mapa, milhões morreriam imediatamente por combustão, colapso estrutural, radiação térmica e inalação de fumaça superaquecida. Acabar com a humanidade toda ou aceitar a morte de alguns milhões?

O que se segue é o fim do mundo como conhecemos. Não houve tempo de comunicar a Rússia e centenas, se não milhares, de mísseis, também carregando ogivas nucleares e bombas de hidrogênio, são lançadas em direção à Coréia do Norte. A Rússia, por sua vez, que não consegue identificar claramente a direção dos mísseis americanos (são milhares e os sistemas de detecção são falhos), não pode perder tempo: seus também milhares são apontados e lançados contra centenas de cidades americanas e contra dezenas de alvos da Otan na Europa.

Em torno de cinco bilhões de pessoas morrem. Somente áreas mais distantes, como partes da África, da Oceania e do sul da América do Sul têm alguma chance de manter vida humana, mas não se sabe que tipo de vida. Como disse Nikita Krushev para Kennedy, “os vivos terão inveja dos mortos”. A distopia não está mais na descrição de um mundo hipotético, dominado por corporações ou tomado pela barbárie da luta renovada pela sobrevivência dos poucos que sobraram. Ela está no gatilho inicial. E loucos não faltam!

Os soldados, como meu avô, não voltarão mais em silêncio, incapacitados de comunicar sua experiência. Não existirão soldados, civis e experiências. Não haverá volta. O silêncio será da humanidade!

 
 
 

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